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sábado, 15 de outubro de 2016

PILAS DE PEDRA

Por Ana Manuel Ferreira
Em Capazes.pt


Não se alarmem pelo título da crónica, não vou pôr-me para aqui a fazer reviews a dildos ou algo do género. Mas é mesmo esse o tema: uma pila de pedra.

Sucede que uma cidadã russa achou que era indigno colocar perto de uma escola uma réplica da estátua de David de Miguel Ângelo.
O David está nu, claro.

A senhora preocupa-se imenso com o facto de as crianças observarem a nudez da estátua, diz que não é normal e lhes deforma a alma. Nem mesmo o facto de a escola alegar que os seus alunos tinham cultura suficiente para não se chocarem com a estátua apaziguou a mulher.

E não é só na Rússia que a nudez chateia! Ao que parece, alguns media americanos acharam que um quadro de Modigliani que retratava uma mulher nua precisava de ser censurado. Ou seja, um dos mais valiosos quadros do mundo (o mais caro de um italiano), foi desfocado e censurado porque mostrava maminhas e pelos púbicos.

O Drama!
O Horror!

Perdoem-me a ironia.
A verdade é que isto me perturba profundamente e tenho de rir para não chorar.
Que obsessão é esta com a censura da nudez, quem resolveu dizer que os nossos corpos eram algo sujo que precisava de ser tapado, escondido, motivo de vergonha? Será que existe alguém no mundo que não tenha nascido nu?
O que há de tão errado em mostrar pilas e mamas e pelos às crianças?

O que há de tão errado em contar a história verdadeira da sua concepção?
Que história ridícula é essa da sementinha? E o raio da cegonha, que nem dois metros conseguiria transportar um puto, quanto mais de França até aqui?
Será que queremos mesmo mentir aos miúdos? Será que queremos fazê-los de parvos e minar a confiança que têm em nós? Será que queremos que eles cresçam com a ideia de que os seus corpos são algo que precisam de esconder?
Se calhar a culpa é dos meus pais. Sou uma traumatizada, coitada de mim.

É que cresci com gente nua a andar pela casa.
Corri nua na praia atrás das gaivotas e do meu irmão, que também andava por lá com a pilinha a abanar ao vento. Nos meus álbuns de fotografias, disponíveis para a visualização de toda a família, existem fotos da minha mãe grávida e nua, a falar ao telefone.
Nunca isto me pareceu estranho, nunca me senti esquisita. Sempre que via a fotografia da minha mãe nua, via uma grávida a falar ao telefone, só recentemente é que me apercebi que andava a mostrar aos meus sogros fotos da minha mãe em pelota.
(Mamã: sei que provavelmente não te importas, mas desculpa lá o mau jeito)
Mas há mais!

A minha infância ia dar ao Quintino pano para mangas.
Cresci a ver fotos de pipis e pilinhas em livros de anatomia. Aprendi como as coisas funcionavam, comi muita sebenta com vaginas desenhadas, enquanto a minha mãe se preparava para os exames.
Quando perguntei como se faziam os bebés aos meus pais, mostraram-me um livro com imagens e explicaram-me como a coisa funcionava. Sem filtros. Sem a parte do “quando um homem e uma mulher se amam muito”, porque essa parte não é científica. Essa parte é o que dizemos a nós próprios para diminuir a vergonha de algo que não é vergonha nenhuma. (Como podemos ter vergonha do milagre que é criar uma vida?)

Mais tarde fiz a mesma pergunta à minha ama, que me contou a história de o homem regar a sementinha da mulher. Chamei-lhe mentirosa e expliquei-lhe o que me tinham dito, usei palavras feias como pénis e vagina. A senhora ficou de todas as cores, coitada. Não sei que idade tinha, mas devia ser menos de seis anos porque acho que ainda não andava na escola.
Só gostava de ser uma mosquinha para ouvir a conversa que ela teve com os meus pais depois.

Digo que estou traumatizada, mas a verdade é que não o sinto.
Cresci feliz e bem resolvida. Fui boa aluna e uma adolescente responsável, tive cuidado com a minha saúde sexual (sim, isso existe) e não deixei de passar pelas experiências que queria. Tive paixonetas platónicas, flirts e namorados que gostaram mesmo de mim, até que um deles se casou comigo (coitado).

Hoje ambos andamos nus pela sala, prontos a traumatizar os filhos que hão-de vir.
Pelo menos só se estraga uma casa.

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